segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

SISTEMA DE GESTÃO DA QUALIDADE NA AVIAÇÃO CIVIL BRASILEIRA


 Por Marcelo de Col Gomes Rezende - www.linkedin.com/in/marcelodecol


Resumo: Este artigo descreve a forma de gestão da qualidade na aviação civil brasileira, bem como contribuir para uma reflexão e oferecer novos ângulos de análise e tomada de decisão voltada para a melhoria.

1 Introdução
A aviação comercial brasileira experimenta expansão e crescimento da ordem de 12% ao ano desde 2007 destacou estudo do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) divulgado em 2010, a projeção do estudo aponta para um crescimento acelerado nos próximos 15 anos. Os números crescentes por transporte de passageiros e cargas afetam diretamente as estratégias das diversas empresas do setor aéreo, especialmente as companhias aéreas que possuem em seu dia-dia desafios de um setor bastante regulamentado e pouco lucrativo do ponto de vista do custo operacional face aos custos operacionais das companhias aéreas estrangeiras.
Uma destas estratégias é a Gestão da Qualidade, foco deste artigo. Essa estratégia deve envolver a organização de forma global, deste o atendimento inicial do cliente por meios virtuais como compra de passagens e check in eletrônico ou presenciais nas lojas e balcões de atendimento, passando por processos complexos de gerenciamento da manutenção, cadeia de suprimentos e operações de voos das frotas de aeronaves.
Este estudo científico apresenta um panorama do sistema de gestão da qualidade na indústria aeronáutica brasileira e pretende contribuir para uma reflexão abrangente, oferecendo novos ângulos de análise.
1.1 Revisões teóricas
Antes, porém, é importante apresentar o entendimento de autores, entidades e normas reconhecidas nas áreas da qualidade e aviação, relacionados aos conceitos básicos da qualidade.
1.1.1 Controle da Qualidade:
Para a ISO 9000 (2005), controle da qualidade é a parte da gestão da qualidade focada no atendimento dos requisitos da qualidade.
Segundo a American Society for Quality (ASQ), controle da qualidade é a técnica de observação e atividades utilizadas para cumprir os requerimentos da qualidade.
De acordo com KINNISON (2004), controle da qualidade é definido como um conjunto de atividades de inspeção, sendo: as inspeções das atividades de manutenção na aeronave, as inspeções de oficinas, as inspeções de recebimento de materiais, as inspeções de ensaios não destrutivos (END) e a execução de calibração de instrumentos, equipamentos e testes.
Já para o IATA Reference Manual for Audit Program – IRM (Julho 2014), controle da qualidade pode ser entendido como auditoria, inspeção ou teste das saídas de um processo, que pode ser um produto, um serviço ou uma função, para determinar a conformidade com desempenho técnico e ou padrões de qualidade. Atividades de controle da qualidade são tipicamente patrocinadas pelos gestores das áreas de operações, manutenção ou security que possuem responsabilidade direta em safety¹ e security² em suas respectivas áreas.
Controlar a qualidade significa atender a critérios específicos. Função está muito mais ligada as atividades de inspeção do que de auditoria, neste sentido há um alinhamento entre os conceitos apresentados por KINNISON (2004), ASQ e pela ISO 9000 (2005). De forma prática o controle da qualidade na aviação civil desdobra-se nas atividades descritas por KINNISON (2004).

¹ Safety: Área responsável pelo desenvolvimento e aprimoramento das políticas de segurança operacional (também conhecida como segurança de voo)
² Security:Área responsável pelo desenvolvimento de políticas de segurança patrimonial e contra atos ilícitos

1.1.2 Garantia da Qualidade:
Segundo a ISO 9000 (2005), garantia da qualidade é a parte da gestão da qualidade focada em prover confiança de que os requisitos da qualidade serão atendidos.
Para a American Society for Quality (ASQ), garantia da qualidade é definida como atividades planejadas e sistemáticas implementadas em um sistema da qualidade para que os requisitos da qualidade de um produto ou serviço sejam cumpridos.
Para KINNISON (2004), garantia da qualidade é definida como um conjunto de atividades que englobam a administração e o gerenciamento do setor de garantia da qualidade, as atividades do “CASS – Continuing Analysis and Surveillance System (Sistema de Vigilância e Análise Continuada), a condução das auditorias nas organizações de manutenção e engenharia, da manutenção dos registros técnicos e da ligação com a entidade reguladora e todas as áreas que englobam as organizações de manutenção e engenharia.
Segundo o IATA Reference Manual for Audit Program – IRM (Julho 2014) garantia da qualidade pode ser entendida como um processo formal e sistemático de auditorias e avaliações do sistema de gestão e as funções operacionais de um operador ou prestador para assegurar:
  • Conformidade com a regulamentação e requerimentos internos;
  • Satisfação de necessidades operacionais declaradas;
  • Identificação de condições indesejáveis e áreas que necessitam de melhorias;
  • Identificação de perigos.
Garantir a Qualidade está ligada a uma série de atividades que farão com que exista confiança no serviço ou produto, essa confiança é traduzida pela criação/atualização de procedimentos e melhoria de processos das áreas produtivas e outras áreas de suporte. As atividades descritas pelo modelo de KINNISON (2004) são atualmente realizadas na integra pela área da Garantia da Qualidade.
1.1.3 Gestão da Qualidade:
Para a ISO 9000 (2005), são atividades coordenadas para dirigir e controlar uma organização, no que diz respeito à qualidade.
Segundo PALADINI (1998), é o conjunto de estratégias que, organizadamente desenvolvidas, visam produzir qualidade em processos, produtos e serviços.
De acordo com o IATA Reference Manual for Audit Program – IRM (Julho 2014), é o conjunto de atividades organizacionais, planos, políticas, procedimentos, processos, recursos, responsabilidades e de infraestrutura implementada para garantir que todas as atividades operacionais satisfaçam os requerimentos regulatórios e dos clientes. Um sistema de documentação controlado é utilizado para refletir os planos, políticas, procedimentos, processos, recursos, responsabilidades e a infraestrutura utilizada para alcançar a conformidade de forma consistente e contínua.
A Gestão da Qualidade tem em suas bases a ciência da administração PALADINI (1998), antes de ser uma atividade como descreve o IRM, deve ser entendida como um conjunto de estratégias.
2 A gestão da qualidade na aviação civil brasileira
Historicamente o setor aeronáutico brasileiro incorpora práticas e modelos dos setores aeronáuticos europeu e norte-americano, sendo a legislação brasileira uma adaptação principalmente da legislação norte americana, seguindo, portanto as tendências desta última. Existem certamente pontos específicos na legislação do setor desenvolvida pela Agência Nacional de Aviação Civil – ANAC, contudo a regulamentação Brasileira, Norte-americana ou Europeia não possuem uma abordagem sistêmica para a gestão da qualidade das organizações do setor.
É encontrada na gestão das empresas aéreas a área (Diretoria ou Gerência) da garantia da qualidade descrita por KINNISON (2004), mas, as atividades deste modelo são desenvolvidas apenas para a área de manutenção de aeronaves e cadeia de suprimentos aeronáuticos. Deste modo há um isolamento entre as áreas das organizações, não existindo políticas de integração entre outras áreas da empresa e suas estratégias para a gestão da qualidade corporativa.
A área responsável pela Garantia da Qualidade, frequentemente está ligada a alta administração das operações de manutenção. Também é de responsabilidade desta área a condução do programa denominado Sistema de Análise e Supervisão Continuada (SASC).
O SASC é preconizado pelo Regulamento Brasileiro de Aviação Civil (RBAC) 121.373 – Acompanhamento e Análise Continuada, descrito abaixo:
121.373 – ACOMPANHAMENTO E ANÁLISE CONTINUADA
(a) Cada detentor de certificado deve estabelecer e manter um sistema de acompanhamento e análise continuada da execução e eficácia dos seus programas de inspeções e de manutenção, manutenção preventiva, modificações e reparos, visando corrigir discrepâncias ou deficiências desses programas. Tal sistema deve acompanhar a execução de todos os trabalhos em curso, sejam executados pelo próprio detentor de certificado, sejam executados sob contrato externo.
(b) Sempre que a ANAC julgar que em qualquer dos programas referidos no parágrafo (a) desta seção os procedimentos e padrões especificados não atendem aos requisitos deste regulamento, o detentor de certificado envolvido deve, após receber a notificação escrita da ANAC, fazer as modificações determinadas.
Como suporte ao requisito foi criada a Instrução Suplementar (IS) 120-079, que descreve aos operadores certificados conforme os RBAC 121 e RBAC 135 como devem implementar o SASC.
Um pouco antes da criação da IS120-79, a resolução n°18 da ANAC publicada em 20 de Março de 2008, obrigava as empresas que operam segundo o RBAC 121 e que executem operações de bandeira, ou seja, que realizam voos para fora do território nacional, deveriam constar e permanecer no programa IATA Operations Safaty Audits (IOSA) – Auditoria Internacional de Segurança Operacional da IATA, a partir de 01 de Janeiro de 2009.
Originalmente a IOSA foi iniciada em 2001 pela IATA (International Aviation Transportation Association), para satisfazer duas necessidades específicas da indústria aeronáutica:
  • A diminuição das auditorias cruzadas das companhias aéreas que iniciariam acordos comercias de compartilhamento de voos (code share) e
  • A manutenção dos altos níveis de segurança operacional.
A partir das premissas da IOSA e da resolução n°18 da ANAC as companhias aéreas brasileiras de bandeira implementaram o programa, que prevê auditorias bianuais de certificadoras acreditadas pela IATA.
Desta forma houve uma integração entre oito áreas operacionais das empresas. São elas: Alta Administração e Safety; Operações de Manutenção; Operações de Voo que englobam a Tripulação Técnica; Operações de Cabine que englobam a Tripulação Comercial; Despacho Operacional; Operações de Solo, Operações de Carga e Security.
Essa integração permitiu que todas as operações fossem planejadas de forma estratégica o que não ocorriam até então.
As companhias aéreas passaram a formar e sistematizar comissões que reúnem as oito áreas operacionais a intervalos planejados para discutir temas ligados a auditorias internas e auditorias de certificação das autoridades aeronáuticas e dos órgãos acreditados pela IATA e mais recentemente aos processos do Sistema de Gerenciamento da Segurança Operacional (SGSO) ou Safety Management System (SMS) preconizado pela ICAO (International Civil Aviation) Doc 9859 (ICAO Safety Management Manual (SMM). Apesar desta integração as áreas ligadas à percepção dos clientes, tratamento de reclamações e posterior realimentação estão fora do âmbito dessas comissões.
Para as demais empresas da indústria aeronáutica que para o foco deste artigo são as organizações de manutenção de aeronaves e produtos aeronáuticos, as políticas para os sistemas de gestão da qualidade e o gerenciamento da segurança operacional são pouco divulgadas e de difícil entendimento.
Em 08/01/2009 a ANAC emitiu um documento denominado, Programa Brasileiro para a Segurança Operacional da Aviação Civil (PSO-BR) esse programa associado com o Programa de Segurança Operacional Especifico da Agencia Nacional de Aviação Civil (PSOE – ANAC), trazem diretrizes para operadores e empresas de manutenção em produtos aeronáuticos, de como deveriam implementar o SGSO.
Em 05/03/2013 a ANAC emitiu a emenda 00 do RBAC 145 – Organizações de Manutenção de Produto Aeronáutico, este regulamento é a revisão do antigo RBHA 145 – Empresas de Manutenção Aeronáutica e um dos seus requisitos, o 145.214-I trata do SGSO para as organizações de manutenção, contudo até hoje não há um entendimento claro de que forma as organizações de manutenção de aeronaves e produtos aeronáuticos devem implementar tais requisitos.
Desta falta de entendimento sobre a implementação do SGSO (SMS) e outras estratégias ligadas a Gestão da Qualidade, Garantia da Qualidade e Controle da Qualidade fazem com que essas organizações tenham seu foco somente no atendimento aos requisitos regulamentares, não havendo espaço para a inovação e melhoria de processos levando a um ciclo vicioso e perverso de limitar-se as prescrições.
3 Conclusão
Não se espera que agências reguladoras provejam caminhos além daqueles prescritos na regulamentação. Isso ocorre em todos os tipos de mercado onde há regulação, sobre tudo no setor aéreo, que é extremamente regulado. Dessa forma as organizações limitam-se a cumprir requisitos, não havendo neste cenário espaço para melhoria e inovação.
Este é exatamente o paradigma que precisa ser quebrado, não é porque se está em um mercado extremamente regulado que não exista espaço para inovação e melhoria. É preciso que haja um esforço por parte da alta direção em entender o presente e pensar no futuro de suas organizações e não há outro caminho que leve a perenização de uma marca ou organização que não pelas mãos da qualidade, isso pode ser traduzido através da implementação de ferramentas conhecidas a várias décadas, esse trabalho deve ser iniciado por um bom Controle da Qualidade que deve entender quais são os requisitos a serem atendidos, também desdobrado no fato deste controle ser executado essencialmente por pessoas, estas devem entender seu papel que é um dos pilares da segurança de voo, mas sobretudo caminhar para a inovação na forma de se executar os processos.
Posteriormente estruturar a área da Garantia da Qualidade que tem por finalidade a criação e melhoria de procedimentos e processos das operações da organização.
Posteriormente a integração das áreas de Controle da Qualidade e da Garantia da Qualidade, é necessária a criação de uma área para Gestão da Qualidade, essa é um pouco mais complexa, pois atinge a empresa de forma global, entretanto é possível combina-la com a Garantia da Qualidade no modelo de KINNISON (2004).
Somente depois que essas três áreas estiverem trabalhando de forma harmoniosa pode-se pensar em implementar ferramentas como Lean, o Lean Seis Sigma, todavia nenhum modelo ou quebra de paradigma será bem sucedido se a alta direção não se engajar na causa desde o seu início ou até mesmo antes, que seja emanada da própria alta direção.

Referências
AGÊNCIA NACIONAL DE AVIAÇÃO CIVIL – ANAC. Regulamento Brasileiro de Aviação Civil – RBAC 121 – Requisitos Operacionais: Operações Domésticas, de Bandeira e Suplementares, Resolução nº 146 , de 17 de março de 2010.
AGÊNCIA NACIONAL DE AVIAÇÃO CIVIL – ANAC. Regulamento Brasileiro de Aviação Civil – RBAC 145 – Organizações de Manutenção de Produtos Aeronáuticos, DOU 07 de Março 2014 Seção 1, página 3 e 4
AGÊNCIA NACIONAL DE AVIAÇÃO CIVIL – ANAC. Instrução Suplementar – IS120-079 – Sistema de Análise e Supervisão Continuada, DOU n° 118, S/1, p.11 de 24 de Junho 2009.
AGÊNCIA NACIONAL DE AVIAÇÃO CIVIL – ANAC. Programa Brasileiro para a Segurança Operacional da Aviação Civil – PSO-BR, 2009
AGÊNCIA NACIONAL DE AVIAÇÃO CIVIL – ANAC. Programa de Segurança Operacional Específico da Agência Nacional de Aviação Civil – PSOE-ANAC, 2009
AGÊNCIA NACIONAL DE AVIAÇÃO CIVIL – ANAC. Resolução n° 18, 19 de Março de 2008
AMERICAN SOCIETY FOR QUALITY – ASQ. Basic Concepts http://asq.org/learn-about-quality/quality-assurance-quality-control/overview/overview.html, acessado em 18/06/2014
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS (ABNT). NBR ISO 9000:2005: Sistema de gestão da qualidade: fundamentos e vocabulário. Rio de Janeiro, 2006.
ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS (ABNT). NBR ISO 9001:2008: Sistema de gestão da qualidade:requisitos. Rio de Janeiro, 2008.
INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA – IPEA Panorama e Perspectivas para o Transporte Aéreo no Brasil e no Mundo. Distrito Federal, 2010.
INTERNATIONAL AIR TRANSPORT ASSOCIATION – IATA. IATA Reference Manual for Audit Program – IRM, 5° Edição, Montreal 2014.
INTERNATIONAL CIVIL AVIATION ORGANIZATION – ICAO. Doc 9859 Safety Management Manual – SMM, Montreal 3° Edição, 2013.
[4] KINNISON, H. A. Aviation Maintenance Management New York: McGraw-Hill Companies, Inc 2004.
PALADINI, E.P. As Bases Históricas da Gestão da Qualidade: A Abordagem Clássica da Administração e seu Impacto na Moderna Gestão da Qualidade: Gestão & Produção v.5, n3, p. 168-186, Dezembro 1998.



Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigado pelo seu comentário!